domingo, 16 de janeiro de 2011

a guitarra, os teus dedos, os teus olhos

como odeio os teus olhos. essa curva de difícil compreensão que se inclina para quem olhas. como o sangue corre neles e grita tudo num só, nada num todo... não os consigo olhar e é por isso que adoro as tuas mãos. é por isso que recordo minuciosamente os teus dedos finos e como eles se movem. quando eles acariciam as cordas da guitarra e tu semi-cerras os olhos como se conseguisses sentir a textura da música.
sempre tive ciúmes da tua guitarra. e da tua crueldade. e da tua frieza. e de seres o mais forte. e de ti. do que conseguias ser sem te esforçar. do eco do teu sorriso e do timbre da tua voz. e de tudo o que não se encontra porque só pode ser teu.
quis ter tempo para te tocar, para memorizar todos os traços da tua cara ou os desenhos do teu cabelo de Outono .. quis tantas coisas, tantas. e quis-te a ti.
na verdade sempre soube que estás morto, que és fumo, poeira ou cinza negra. que és inalcançável, uma linguagem muda presa num lugar longe do meu alcance. e desta vez soube-o mais. como quando achamos que sabemos descodificar sinais, silêncios ou olhares e, afinal, errámos tanto. ou quando achamos que sabemos amar mas nem nos conhecemos.
agora.. agora somos estranhos que já se encontraram à distância de um respirar.
as notas das tuas melodias ouviram-se, uma última vez. e ouvi-te, toquei-te, senti-te. quis-te sem querer.. perdi-te de propósito. vi caminhos, escolhas. línguas, corpos, presenças. desespero com esperança em emergir. eu à espera de ti, tu à minha procura. os teus dedos finos. os teus olhos escuros. as palavras que não acabaste, as que nunca começaste... não as quis, de tanto as querer, e não te quis, de tanto esperar. odiei os teus dedos que encaixavam nos meus e adorei os teus olhos que já não queria ler.
a parte de mim que arrastavas contigo também morreu ali; melhor morta do que viva sem ti. do que arrastada por diversão ou esquecimento.
a música ecoou durante outros tantos segundos... infinitos... mas tão curtos. ficámos juntos naquele momento, com a eternidade à frente de nós.. e ambos a negámos.
consegui ter a tua crueldade. a tua frieza. ser tanto sem tentar. consegui-me desprender de ti.. acho.. porque quis partir a tua guitarra, que te roubava tanto de mim. porque quis abandonar a tua voz, o teu jeito de falar, o teu jeito de pensar, o teu irrealismo e a tua certeza. quis odiar tudo em ti e quis amar tudo um pouco.
acho que o segredo de ter alguém, é saber perdê-la.. deixá-la ir. digo isto porque acho que quando te deixei ir, foi o único momento em que te tive. e amar ... é sentir quando já não se tem, tal como eu te sinto, por vezes.
sempre acreditas-te que nada acontece sem uma razão.. eu também pensava assim. ironicamente ou não, foste tu que me tornas-te céptica a estas corridas com o tempo; nunca me conseguiste dar uma razão.. então eu deixei de acreditar que a razão exista. quando se ganha algo, perde-se algo. e quando se perde .. ganha-se. que diria a razão à cerca do que eu ganhei quando te perdi?
agora que a tua melodia caiu no sossego.. parte de mim vai sempre adorar os teus dedos e a tua guitarra.. e os teus olhos frios.. e a crueldade dos teus movimentos. parte de mim vai amar cada traço de ti, até mesmo aqueles que não consegui memorizar. e essa mesma parte vai admirar como há recantos e partes de nós que se encaixam como um puzzle e tu nunca te apercebeste disso. parte de mim vai-se rir de quantas vezes já repeti os teus olhos, os teus dedos e a tua guitarra.. e como não me cansei.
parte de mim vai esperar que um dia me despertes, ou que um dia me adormeças de vez. parte de mim vai ter saudades tuas.. a outra vai despedir-se e não vai querer olhar para trás.. porque a vida, .. a vida é minha e não tua.
amo-te por metade, digo adeus por outra.
adormeci nos teus braços.. por favor, deixa-me dormir mais um pouco. não me acordes agora.. talvez, silenciosamente, te peça: não me acordes nunca mais, amor.